terça-feira, 17 de abril de 2012

Anencéfalos: lições de um julgamento

O julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a legalidade do aborto dos fetos ou bebês com anencefalia terminou como era previsível, dadas as tendências já manifestadas anteriormente por juízes do STF: aprovaram por larga maioria que o abortamento de anencéfalos, daqui por diante, será “legal” no Brasil. Assim se amplia a lista dos casos “legais” de aborto: gravidez resultante de estupro, risco de vida para a mãe e, agora, também a anencefalia. Qual será o próximo caso?

Impressionaram-me diversas questões nesse julgamento do STF. Parecia que estava em causa o julgamento da Igreja e de sua presença e ação pública na sociedade brasileira. O emprego, a meu ver, abusivo do conceito de “Estado laico”, até mesmo por juízes do STF, assustou-me. A laicidade do Estado, então, desqualifica a priori qualquer argumento que proceda de pessoas religiosas, ou representantes de organizações religiosas? Isso já parece discriminação religiosa e ainda terá muitas conseqüências; a laicidade do Estado precisa ser clareada melhor.

Continuo a me perguntar, por qual razão justificável, perante a Constituição brasileira, o STF assumiu o papel de legislador, atropelando o Congresso Nacional? No caso dos anencéfalos, de fato, não esteve em jogo a interpretação de uma lei já existente; o STF legislou, estabelecendo um novo caso de “legalidade” de aborto, antes não previsto. Foi esta a via encontrada para que grupos de interesse e pressão conseguissem mais facilmente seus intentos? Não seria também esta uma via de subversão do Estado de Direito no Brasil, justamente por conta de quem deveria ser guardião da ordem constitucional?

Impressionantes, os sofismas – afirmações falsas com aparência de verdadeiras – que tiveram livre trânsito nos “palavrosos” argumentos apresentados. Eis alguns: o anencéfalo é um “natimorto”; o anencéfalo é uma não-vida, algo indefinível; o feto ainda não é vida humana; o anencéfalo é uma “vida inviável”... Também tenho a  impressão que venceu, não o direito objetivo, mas algo que poderíamos chamar de “direito emotivo”. É muito questionável o princípio, agora estabelecido, de que pode ser suprimido e eliminado o ser humano que causar desconforto, dor, profundo sofrimento ao próximo, mesmo de forma involuntária. Qual é a culpa do pobre anencéfalo pela dor causada à mãe? Dor compreensível, que merece todos os cuidados e atenções, menos a eliminação daquele que causa essa dor... Quais serão, agora, as próximas vítimas da aplicação desse princípio? Ninguém acredite que isso valeu “só para o caso dos anecéfalos”; a jurisprudência vai aplicar as conseqüências dos princípios estabelecidos. Onde vamos parar?

Esse julgamento do STF nos deixa várias lições. Antes de tudo, continua válido o velho princípio do bom senso: nem tudo o que é “legal”, também é moral. No caso, para a moral cristã, continua valendo a Lei Maior, que é a de Deus, e que ensina: “não matarás”. O aborto de anencéfalos não será um ato moralmente bom, só porque é “legal”. Também fica muito claro que nenhuma mulher está obrigada a fazer esse, ou qualquer outro tipo de aborto. Mas é pena para o Brasil: povo acolhedor e amoroso, ele tem agora uma lei que consagra a insensibilidade diante dos indefesos e imperfeitos e afirma o direito dos mais fortes sobre os mais fracos... Não é da nossa cultura! Pena mesmo!

Publicado em O SÃO PAULO, ed. de 17.04.2012
Cardeal D.Odilo P. Scherer
Arcebispo de São Paulo

Um comentário:

  1. Realmente é uma pena e penso nisso todos os dias, penso que talvez no ritmo em que estamos daqui há algum tempo estaremos falando em aborto de bebês saudáveis só pelo motivo dos pais na verdade preferirem menina do que menino ou vice-versa... É horrível pensar que temos uma sociedade que simplesmente prefere a via "mais fácil" para se livrar de um "problema", o que será então mais pra frente? E as consequências psicológicas para essa mãe? Porque tem muitas consequências, mais duras do que ter um filho natimorto ou que viverá por um tempo determinado, aliás quem de nós que não viverá por um tempo? Podemos não saber qual será nosso dia, porém todos nós um dia iremos partir. Se continuarmos nesse ritmo um dia farão exames nos bebês ainda no útero das mães para saber que doenças são prováveis de aparecer ao longo da vida e se acharem no direito de interromper a gestação de uma criança que tem mais probabilidade de ter um câncer para tentarem gerar um que tem menos ou nenhuma probabilidade...

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